Sobre o CECAFRO

Ante intolerâncias do mundo eurocêntrico, que colocou à margem do encontro/ confronto do Velho com o Novo Mundo, falares, saberes, formas de comunicação de povos de ancestrais tradições orais, como ameríndios, africanos, afro-diaspóricos e outros submetidos no fazer-se da modernidade, abrindo questões e possibilidades de estudos, delinearam-se perspectivas de abordagens em diferentes áreas de conhecimento, historicamente pouco trabalhadas ou desconsideradas.

Tornou-se perceptível que injunções cultura/natureza, ritmos e artes, materialidade e espiritualidades corpóreas – ignoradas ou consideradas índices de hierarquia racial por cânones letrados da expansão ocidental -, a partir de mobilizações, embates limítrofes, outras reivindicações, grupos desvalorizados vêm rompendo barreiras históricas. Suas insurgências, inicialmente locais e fragmentárias, não só oxigenam o arcabouço cultural contemporâneo como articulam identidades múltiplas, adensando lutas por autonomia, liberdade, reconhecimento de suas culturas, em reverberações por direito à memória e à história.

Frente manifestações político-culturais nesse sentido, sinais de tempos e espaços soterrados e anulados, professores e estudantes da PUC/SP, das áreas de Ciências Sociais, Ciências da Religião e História, tentando “tocar o futuro em seu lado de cá”[1], organizaram o Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (CECAFRO/PUC-SP), reunindo pesquisadores e ativistas de diferentes campos de conhecimento e instituições, no intuito de promover pesquisas, encontros, assessoria a professores na temática História da África, culturas africanas e afro-brasileiras, de diferentes áreas de atuação. Em amplas reuniões (agosto/setembro-2006), discutindo propósitos e seu arcabouço, a designação inicial Centro de Estudos Culturais Africanos e Afro-Brasileiros foi questionada: primeiro, pelo poeta e militante negro Oswaldo de Camargo, seguido pelo Prof. Kabengele Munanga (USP), que propondo foco em África e Diáspora alcançou plena adesão.

Problematizando formas de conhecer e interagir em perspectivas de África além conceito geográfico do continente africano, o CECAFRO propõe recortes de estudo, organiza encontros sobre África/Áfricas, no sentido de diversificar compreensões de suas inserções, interações, desafios e lutas culturais contemporâneas. Nessa direção, questionando categorias de tempo, espaço, relações da civilização euro-ocidental que, desencadeando diásporas de povos e culturas africanas, como de nações das Américas, colocou-nos na contingência de apreender narrativas, literaturas, práticas culturais de povos e civilizações outras, interagimos com seus meios de expressão e comunicação em contínuas reinvenções em fluxos atlânticos.

Enfatizando visões cósmicas, conjugando linguagens orais e escritas performativas (IROBI, 2012, p. 272) produzidas nas diásporas e derivas culturais da modernidade, o CECAFRO prioriza diferenças culturais e gêneros orais em diáspora; políticas de representação e significações culturais críticas em perspectivas decoloniais, apreendendo conflitos e negociações sem reducionismos a sincretismos sem história.[2]

As preocupações com cultura delinearam desde discussões travadas no âmbito de estudos culturais, em atenção a modos de ser, viver, pensar; relações entre povos e grupos populares frente a políticas coloniais e estratégias de governabilidade acionadas na realização histórica do sistema mundo global. Promovido por estudiosos de vários campos de saber, o Centro de Estudos Culturais de Birmingham constituiu-se no “enfraquecimento dos limites tradicionais entre as disciplinas e o crescimento de modos de pesquisa interdisciplinares que não se encaixam facilmente ou não podem ser contidas nos limites das áreas de conhecimentos existentes.” (HALL, 2005, p. 9)

Sem desconsiderar conhecimentos produzidos, fontes de pesquisa e discussões acumuladas, propostas de “indisciplina acadêmica” permitem ultrapassar fronteiras instituídas entre saberes e conheceres em direção a intercâmbios, percepções de incorporações culturais[3], em zonas de contato[4] entre povos e suas formas de comunicação ontem e hoje.

Desdobramentos com atenção a questões de gênero e raça; culturas negras e lutas culturais; mídias e dialética de identidades, abordagens de estudos culturais convergem a estudos pós-coloniais, enfrentando essencialismos raciais desde contranarrativas históricas, concepções de corpo e cosmologia, linguagens e valores, ampliaram horizontes de pesquisa e discussões.

Diante “novas formas de racismo”, Stuart Hall argumentou “as anteriores têm sido poderosamente transformadas pelo que chamo ‘racismo cultural’. Isto é, as diferenças na cultura, nos modos de vida, sistemas de crença, identidade e tradição étnica hoje são mais importantes que qualquer coisa que tenha a ver com formas especificamente genéticas ou biológicas do racismo.”  Em atenção a mecanismos associados a práticas racistas locais, Hall alerta para especificidades históricas de relações raciais em cada configuração cultural; “em cada sociedade o racismo tem uma história específica que se apresenta de formas específicas, particulares e únicas, que influenciam sua dinâmica e têm efeitos reais que diferem entre uma sociedade e outra” (HALL, 2005, p.9).

Como a natureza e a historicidade das questões raciais no Brasil – impregnadas por noções de sincretismo, democracia racial, homem cordial, mestiçagem, luso-tropicalismo -, interagiram com políticas racistas e coloniais no Atlântico Negro, o CECAFRO situa atenções a fulcros culturais entre suas margens. Frente às diversas lutas de povos africanos e da diáspora, em defesa de sua humanidade e liberdade roubadas, procura apreender como se renovam matrizes culturais africanas no Brasil.

No contexto brasileiro atual, de abertura a mercados africanos, “políticas afirmativas” em relação a diferenças étnico-culturais, atendimento à Lei 10.639/2003, a premência de estudos de interações África/Brasil, na constituição de nossas culturas, heranças, patrimônios e práticas históricas, aponta para singularidade do CECAFRO/PUC-SP. Tanto em termos de análises pautadas em estudos culturais e pós-coloniais, como por procurar não perder de vista circuitos de poderes e saberes envolvendo Europa, Áfricas e Américas.

No reconhecer o refazer-se de culturas africanas em diáspora, trabalhar linguagens e configurações de áreas culturais negras no Atlântico permite entrever circuitos de comunicação de homens, mulheres, jovens, de Áfricas do Velho Mundo, utilizando seus corpos, artes e habilidades no traduzir e atualizar suas tradições e valores em Áfricas do Novo Mundo.

Nesse sentido são valiosas leituras e diálogos com pesquisadores, poetas, músicos, cantores e contadores de histórias, escritores, atores, cineastas e historiadores africanos atentos a redes de tradições orais, visuais e rítmicas, éticas, artísticas e filosóficas no continente africano e na diáspora, como Elikia M´Bokolo, Olabiyi Yai, Kabengele Munanga, Kasadi wa Mukuna, Toyin Falola, Boubacar Barry, Hampátê Bâ, Joseph Ki-Zerbo e muitos outros, além de intelectuais do “Atlântico Negro”, como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Édouard Glissant, Lewis Gordon, Paget Henry, que acompanham povos africanos em luta contra o silêncio, esquecimento, desfiguração, com pautas por direito a passado, histórias, cidadania cultural.

Constituir acervos rítmico, sonoro, visual, cinematográfico e bibliográfico, enquanto suportes para fazer avançar compreensões mais densas acerca de confrontos culturais vividos em diferentes Áfricas e suas diásporas, são atividades e horizontes que dinamizam o escopo e perfil do CECAFRO, sempre na perspectiva de superar desafio fundamental: Quais memórias desaparecem quando apenas conhecimentos arquivísticos são valorizados? Como ir além “poder do arquivo” ocidental? Daí desdobramentos: Como alcançar/resguardar performances, fluxos de tradições orais, metáforas, provérbios e rasuradas oralidades depositados no folclore? Como pensar arqueologia de sabedorias orais? Quais publicações organizar para formar Biblioteca da Diáspora, atenta a circuitos, rastros, redes de comunicação reinventadas por protagonistas negr@s em Brasil, Caribe, Latino América?

Com tais perspectivas, acordos e convênios interuniversidades, intercâmbio professores/estudantes, como o firmado com a Universidade do Texas (Austin) via Convênio CAPES/UT (2008/2011), devem contribuir ao pensar e reunir inventários de linguagens e literariedades orais; cultura material e sensível de religiosidades em diáspora; identidades e reinvenções de pertença. Voltado ao reinventar tradições vivas em diáspora, ao diversificar fontes de estudo, documentos/monumento históricos, torna imprescindível o CECAFRO vir a ser uma central de documentação de tradições orais.

Reunindo patrimônios de oralidades africanas e da diáspora, CDs, DVDs, filmes e documentários, material bibliográfico sobre culturas de matrizes orais, contando com livros e outros materiais, o CECAFRO vem organizando na PUC/SP, com doações do Prof. Toyin Falola (Texas University) e do Prof. Robert Adams (DePaul University), este via Associação Fulbright, um centro de referências para profissionais com pesquisas em culturas negras e professores envolvidos com as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.

[1] Expressão de BHABHA, 1998, p. 27.

[2] Na perspectiva que “o modelo sincrético, não democrático, constituído pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente, foi assimilacionista.” Cf. MUNANGA, Kabengele, “Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira”, In: SANTOS e MENEZES (orgs.) Epistemologias do Sul, São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 446.

[3]Termo de WILLIAM, 1979, para pensar dinâmicas entre residual, emergente, dominante em tensões, negociações e “incorporações seletivas”.

[4] Expressão de PRATT, 1999, para dar conta de encontros/confrontos entre povos de geografias e histórias radicalmente estranhos entre si.

Uma ideia sobre “Sobre o CECAFRO

Deixar mensagem para Victor Martins Cancelar resposta